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15 de dez. de 2024

Como o futebol na Palestina ainda é uma das poucas coisas que fazem sorrir

Além de inevitavelmente político, o futebol em Gaza é um respiro, um grito de permanência e uma paixão que promove união dentro de um cenário de devastação inimaginável.

por

Vitor Daniel

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Se você abrir o site da Associação Palestina de Futebol hoje, vai se deparar com algo incomum para o um site esportivo: notícias sobre como as Forças Israelenses bombardearam mais um estádio ou algum treino da seleção feminina. Você vai encontrar pedidos de justiça para atletas que foram presos sem qualquer justificativa e algumas cartas de homenagem a jovens talentos que foram assassinados pelo governo de Israel, tudo isso acompanhado de uma grande imagem, na página principal, que conta os mais de 340 jogadores vítimas do genocídio, dentro dos mais de 500 atletas e dos mais de 44 mil palestinos assassinados. Informações estampadas no site de uma associação nacional de futebol que, muito antes de outubro de 2023, já tinha uma seção especial de “violações israelenses”, noticiando todos os atentados cometidos contra o futebol palestino. 

Contagem de mortos no site da Associação Palestina de Futebol. (PFA)

Em janeiro de 2024, mesmo com o momento crítico, a seleção palestina se classificou para as oitavas de final da Copa da Ásia pela primeira vez na história, e luta por uma vaga na Copa do Mundo de 2026.

 

Além de inevitavelmente político, o futebol em Gaza é um respiro, um grito de permanência e uma paixão que promove união e alegria dentro de um cenário de devastação inimaginável. Segundo Bader Alzaharna, pesquisador do Pal-Think for Strategic Studies.:


“Se você visitasse Gaza antes da guerra, teria sentido tanto o entusiasmo pelo futebol quanto a alegria palpável que ele traz para a comunidade. Mas agora, de forma abrupta, as luzes dos estádios foram substituídas pelas chamas da guerra, e o grito das torcidas pelos rugidos estrondosos dos aviões, lançando uma sombra sobre tudo que é bonito.”


Jogar futebol não era apenas um passatempo, mas uma forma de salvação para milhares de jovens, proporcionando consolo em meio ao caos, amizades na solidão, alívio diante da ansiedade. O futebol foi um interlúdio para a dor, uma breve distração dos sons de bombardeios gravados em nossas cabeças em guerras anteriores. O amor pelo futebol esteve vivo mesmo quando a morte era evidente.”


Em julho de 2024, Israel bombardeou a escola de Al-Awdah, que virou um abrigo na cidade de Abasan, em Khan Yunis, no sul de Gaza. Durante o ataque, os palestinos refugiados assistiam a um jogo de futebol entre crianças, e 29 deles foram assassinados. Jogar futebol, ou torcer, é o que ameniza, mesmo que minimamente, o sofrimento constante de milhares de crianças palestinas.


A Palestina como ideia e o futebol como instrumento político


Com um século de história, o futebol palestino é essencial para a construção do inventário da memória, das lutas e da identidade palestinas e para o entendimento da sociedade palestina moderna, tanto na busca pelo Estado nacional quanto na tentativa de integração no sistema internacional.


Mesmo que tenha sido por muito tempo encarado como um tema menos importante, o futebol palestino é fundamentalmente uma questão de política e poder. Através dele, os palestinos contestam as estruturas de poder, o racismo e o colonialismo, enquanto expressam, organizam e afirmam suas próprias identidades.


Os palestinos jogam futebol pelo direito de existir. Para um povo que teve suas identidades e subjetividades forjadas na ruína, na despossessão, na violência e, é claro, na resistência, o futebol é uma forma de honrar o passado, preservando a memória que foi constantemente atacada no confronto colonial; de viver - e resistir - o presente, com todas as suas dificuldades; e de tentar visualizar um futuro onde a esperança reside na própria resiliência, já que, para os palestinos, passado, presente e futuro estão entrelaçados pela catástrofe. 

Crianças jogam futebol em uma praia em Gaza. (MOHAMMED ABED / AFP)

A destruição sistemática do futebol em Gaza


Gaza como conhecemos hoje, com as atuais “fronteiras”, só passou a existir após a grande catástrofe de 1948 conhecida como Nakba, no processo que gerou a expulsão de mais de 750 mil palestinos de suas casas. A região recebeu uma parte dessas pessoas, refugiadas em sua própria terra, mas que, mesmo diante das perdas, passaram a reconstruir o movimento esportivo. Antes da Nakba e de virar uma “faixa”, o local já era muito importante no cenário esportivo, mas, principalmente no período sob administração do Egito (1948 - 1967), foi a maior potência do futebol palestino, cedendo muitos jogadores para a Seleção - que não era oficialmente reconhecida pela FIFA - e fortalecendo a ideia do futebol como forma de provar a própria existência.


Depois da “retirada” das forças israelenses e dos assentamentos, em 2005, Gaza se tornou um grande campo de concentração, conhecido como “a maior prisão a céu aberto do mundo”, experienciando uma das faces do apartheid sionista e servindo como um laboratório de armas e estratégias de repressão e controle. A população se encontrava encarcerada, enquanto Israel controlava tudo, desde o movimento ao mercado, mantendo a economia e o fluxo de recursos humanitários de Gaza à beira do colapso, tudo isso dentro de um território com uma das maiores densidades populacionais do mundo. Não demorou muito para os “conflitos” começarem, sempre com a justificativa de combater o Hamas e terrorismo, e a região sofreu com bombardeios diversas vezes nas últimas duas décadas. A cada nova operação, a intensidade e os efeitos colaterais aumentavam, matando mais civis e inviabilizando cada vez mais a vida naquele lugar, sem intervenção do Ocidente e das Organizações Internacionais.


O futebol local, é claro, foi extremamente afetado, ficou cada vez mais restrito e isolado, mas continuou sendo sinônimo de resistência. Não é por acaso que, durante todos os momentos em que os ataques se intensificaram, estádios de futebol foram alvos comuns, escolhidos como símbolo da destruição sistemática da cultura palestina e dos ambientes de organização e envolvimento popular.


Tanto em 2004, quanto em 2007,  a Palestina foi prejudicada nas Eliminatórias Asiáticas para a Copa do Mundo porque vários jogadores de Gaza foram impedidos de sair do território em jogos decisivos. Já em 2008, 15 estruturas esportivas palestinas foram destruídas durante os bombardeios e, entre as vítimas daquele ano, estavam quatro crianças, entre 8 e 12 anos, que morreram enquanto jogavam bola no campo de refugiados de Jabalia. Quatro anos depois, Israel bombardeou e destruiu a sede do Comitê Paralímpico da Palestina, junto com o importante Estádio da Palestina, na Cidade de Gaza, e várias outras instalações esportivas da região.


A destruição do Estádio da Palestina, que foi bombardeado diversas vezes na última década. (Reprodução)

Enquanto isso, com aval da FIFA e da UEFA, Israel se preparava para sediar a Euro sub-21 em 2013, mesmo com o protesto incansável dos palestinos e até de estrelas do futebol mundial. 62 jogadores das ligas europeias, entre eles nomes conhecidos como Frédéric Kanouté, Abou Diaby, Eden Hazard e Didier Drogba, assinaram uma carta pedindo que UEFA não permitisse que o torneio fosse sediado por um país que, aos olhos do mundo, estava dizimando um povo:


“É inaceitável que crianças sejam assassinadas enquanto jogam futebol. Israel sediar a Euro sub-21, nessas circunstâncias, será visto como uma recompensa por ações que são contrárias aos valores esportivos. Mesmo com o cessar-fogo recente, os palestinos ainda são forçados a suportar uma existência desesperada sob ocupação, eles devem ser protegidos pela comunidade internacional. Todos os povos têm direito a uma vida com dignidade, liberdade e segurança.”


Outro jogador marcante fez um apelo às instituições internacionais do esporte: Mahmoud Sarsak, nascido em Gaza, que atuou pela seleção palestina e foi preso em um checkpoint israelense em 2009, sem acusações formais, enquanto tentava viajar para se juntar ao seu novo clube. Ele passou três anos na prisão e chegou a fazer greve de fome por 94 dias, se tornando um símbolo da resistência:


“Israel trabalha incessantemente para reprimir o futebol palestino, assim como faz com várias outras expressões da cultura palestina. Permitindo que a competição aconteça, a UEFA está legitimando a ocupação contínua de Israel, a opressão e as políticas de apartheid.” Mesmo assim, o campeonato aconteceu tranquilamente.


Em uma nova escalada em 2014, foram mais de 30 instalações esportivas danificadas ou destruídas e 4 crianças da mesma família, filhas de pescadores, foram assassinadas enquanto jogavam futebol em uma praia. Segundo as Forças de Defesa de Israel, “baseado em resultados preliminares, o alvo do ataque eram terroristas do Hamas e as vítimas civis desse ataque foram um resultado trágico”. No mesmo ano, 9 palestinos foram assassinados enquanto assistiam à semifinal da Copa do Mundo entre Argentina e Holanda em uma cafeteria em Gaza.


As sequelas de um ano de genocídio 


Gaza está sendo apagada do mapa e o futebol é também uma plataforma de denúncia dos crimes cometidos por Israel. Com a mesma facilidade que acessamos o resultado de um jogo de futebol no nosso celular, temos acesso a imagens do genocídio em tempo real, com uma escala de destruição que expõe muitos problemas da moral Ocidental e do direito internacional.


Desde outubro de 2023, as ligas locais foram suspensas e as páginas dos clubes nas redes sociais rapidamente viraram uma plataforma para a divulgação de obituários e homenagens aos mortos.


É em Gaza que fica o Estádio Mártir Muhammad al-Durrah, nomeado em homenagem ao menino Muhammad al-Durrah, de 12 anos, que foi assassinado em 2000, logo no início da Segunda Intifada, enquanto tentava se proteger nos braços do seu pai, em uma imagem que ficou eternizada e rodou o mundo. O estádio virou abrigo e o pai de Muhammad, Jamal al-Durrah, perdeu mais dois irmãos em 2023.


Mais de 80% das instalações esportivas de Gaza foram destruídas, as sedes de vários clubes se encontram debaixo dos destroços e toda a infraestrutura do futebol palestino foi danificada, incluindo os principais estádios do país, como: o Al-Yarmouk; Palestine Stadium; Muhammad al-Durrah; Beit Hanoun; Al-Tuffah; Al-Suhja’iya; Al-Shati; Beith Lahia; Rafah; Deir al-Balah e o Estádio Municipal de Khan Yunis.


Palestinos sentados nos escombros de um estádio. (Reprodução)

O Estádio Al-Yarmouk, inaugurado em 1952, na Cidade de Gaza, é um dos mais antigos e mais importantes estádios da Palestina, que foi o palco da primeira partida oficial entre um clube de Gaza e um clube da Cisjordânia depois da Guerra de 1973 e do avanço da ocupação. Em 1994, no mesmo estádio, o Al-Wakrah, do Qatar, foi o primeiro clube permitido por Israel a entrar nos territórios palestinos para jogar um amistoso. Depois dos Acordos de Oslo, a Associação Palestina de Futebol só foi reconhecida pela FIFA em 1998, mas os palestinos só conseguiram disputar o primeiro amistoso em casa em 2008, e a primeira partida oficial em casa em 2011. Em 2024, o Al-Yarmouk foi destruído por Israel e transformado em um campo de detenção, onde refugiados palestinos sofreram com a fome e com torturas.


Palestinos detidos pelo exército de Israel no Estádio Al-Yarmouk.  (Reprodução)
Palestinos detidos pelo exército de Israel no Estádio Al-Yarmouk.  (Reprodução)
Palestinos detidos pelo exército de Israel no Estádio Al-Yarmouk.  (Reprodução)

Entre os atletas assassinados, está Mohammed Barakat, jogador lendário da Seleção, conhecido como “A Lenda de Khan Yunis”, que foi o primeiro a marcar 100 gols no futebol palestino. Pouco tempo antes da sua morte, Mohammed gravou um vídeo direcionado aos familiares e aos fãs, se despedindo e pedindo perdão, enquanto o som dos explosivos pode ser escutado ao plano de fundo. Momentos depois, a casa dele foi bombardeada.


Outra perda gigantesca foi o Hani Al-Masdar, que teve uma carreira admirável e chegou a ser chamado de “nosso Pirlo” por alguns companheiros palestinos. Depois de se aposentar, Hani virou técnico e poucos anos atrás passou a comandar a seleção olímpica da Palestina, guiando vários talentos do país. Ele foi morto por um míssil israelense em janeiro.


Ahmad Abu al-Atta, zagueiro do Al-Ahly Gaza, foi assassinado dentro da sua própria casa, junto com a sua esposa e seus dois filhos. Hamdi Lubbad, meio-campo do Al-Yarmouk Club, também foi assassinado junto com a sua esposa e suas quatro filhas. Essas são só alguns nomes, entre os centenas de atletas, árbitros, dirigentes e os milhares de torcedores vítimas do genocídio. Enquanto isso, apesar dos protestos e petições, a FIFA segue negando qualquer punição ao Estado de Israel.


Jornalistas esportivos, que sonham em cobrir as grandes competições internacionais e documentar o futebol de Gaza, estão sendo forçados a arriscar a vida para documentar o apagamento do próprio povo. É o caso do Abubaker Abed (@AbubakerAbedW), apaixonado por futebol, que há um ano cobre de perto as consequências do genocídio direito de Deir al-Balah. Abed constantemente noticia a morte de atletas e crianças e, mesmo assim, ainda acha tempo e inspiração para produzir matérias brilhantes sobre o simbolismo do futebol em Gaza, como foi o caso da história do Issam Al-Hassanat, o torcedor mais antigo do Liverpool na região.


O que o futebol significa perante tudo isso?


O futebol em Gaza tem muita história e muita importância, mas é quase desconhecido aos olhos do mundo. A própria questão palestina estava escanteada, mas nos últimos 13 meses isso mudou, e o estádios de futebol se tornaram um dos maiores espaços de apoio à luta anticolonial e de denúncias contra o genocídio, com manifestações de solidariedade e bandeiras palestinas dentro de várias torcidas ao redor do mundo, fortalecendo a causa palestina como uma causa internacional, e a própria Palestina como uma ideia.

Homenagem da torcida do Paris Saint-Germain à Palestina. (Reprodução)

Apesar de parecer distante, a Palestina está muito próxima de outras realidades ao redor do mundo: a história de todos os jovens atletas palestinos que foram assassinados por Israel tem muitas semelhanças com a história de Dyogo Costa Xavier de Brito, ex-jogador da base do América Futebol Clube que, aos 16 anos, foi assassinado com um tiro nas costas durante uma operação da Polícia Militar enquanto estava a caminho do treino, em 2019. Em nota, a PM primeiramente afirmou que Dyogo era traficante, depois voltou atrás e afirmou que ele foi encontrado morto. Não houve nenhuma ação por parte de Dyogo, a mochila “suspeita” carregava as chuteiras dele, e o jovem foi socorrido pelo próprio avô, que viu o neto baleado caído na rua. 



Em 2014, Jawhar Nasser Jawhar, de 19 anos, e Adam Abd al-Raouf Halabiya, de 17 anos, voltavam de um treino no Estádio Faisal Al-Husseini quando foram alvejados nos pés e nas mãos por soldados israelenses, antes de serem presos, com a justificativa de que eles tinham se aproximado demais de um checkpoint israelense e que estavam prestes a jogar uma bomba em um posto de controle, como sempre, sem qualquer evidência. Dyogo, Jawhar e Adam têm histórias cruzadas pela opressão e pela violência, que assola a Palestina, o Brasil e as periferias mundiais.



Excluído da história sionista e impedido de narrar a própria história, o povo palestino formou a sua identidade ligada à diferentes maneiras de resistir e de preservar a sua memória, utilizando manifestações da cultura popular para isso e criando o seu próprio vocabulário polítoco. O futebol foi, e ainda é, um desses elementos, se transformando - durante o seu desenvolvimento - em um espaço de expressão, organização e afirmação da identidade nacional e da luta anticolonial palestina. 


Nação, memória, identidade, resistência. O que é o futebol perante o genocídio? Quando não se tem nada, o futebol é tudo.


Esse texto é fruto de uma parceria do PELEJA com o Centro Internacional de Estudos Árabes e Islâmicos da Universidade Federal de Sergipe (ceai_ufs).

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