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18 de nov. de 2022

Não há mais cabeça pra quem é negro no futebol

No esporte onde o Rei é preto, a saúde mental dos seus irmãos vem se esgotando faz tempo.

por

Fernanda Lima | Murilo Megale

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As veias do futebol, assim como da sociedade, estão entupidas de racismo. Ponto. É daí que se deve partir para entender qualquer coisa sobre o tema.


Outra coisa essencial a ser dita é: o racismo afeta a saúde mental de pessoas negras mesmo quando essas não percebem, mesmo quando ocupam posições de poder relacionadas à fama, ao dinheiro e ao sucesso – lugar onde estão muitos profissionais do futebol. A pele preta parece chamar tanta atenção quanto a conta bancária ou o talento em campo.


Situações de discriminação racial e exposição constante ao famigerado racismo estrutural estão intimamente ligados com índices de estresses, ansiedade, depressão, baixa autoestima, possibilidade de menor autocuidado e até problemas de concentração, memória e aprendizagem de pessoas negras.


Você pode dizer que a comparação entre uma mulher preta que acorda às 5 da manhã e pega dois ônibus para o trabalho e a vida de um jogador preto rico que tem uma série de mordomias é injusta. É verdade, são realidades diferentes e, obviamente, um desses está mais sujeito a ter a saúde mental reduzida a frangalhos. Recortes precisam ser feitos quando se fala de saúde mental e racismo. Questões de gênero, moradia, trabalho, escolaridade, saúde e educação, entre tantas outras, são pontos importantes dentro do tema que interferem diretamente no bem-estar psíquico, seja para melhorá-lo ou piorá-lo.


Segundo o Ministério da Saúde, em pesquisa realizada em parceria com a Universidade de Brasília e lançada em 2019, a cada 10 jovens que se suicidam no Brasil, 6 são negros - de 2012 a 2016, o índice de suicídio aumentou em aproximadamente 12%.


Gráfico mostra aumento de risco de suicídio entre população jovem negra. Reprodução: G1

Tá, mas no começo do texto foi dito que mesmo que não perceba ou que ocupe um lugar de poder, mulheres, homens e crianças negras têm a saúde mental afetada. Isso porque o racismo não se mostra apenas por meio de ofensas como “macaco” nas ruas, estádios e redes sociais, não é sempre escancarado que se apresenta, mas nas entrelinhas de uma suposta brincadeira, de um apelido, de um lugar de trabalho, na fama colocada por professores e diretores nas escolas, no rótulo que o treinador dá quando o moleque ainda está na escolinha e até de um elogio.


Banana com o nome de Grafite foi jogada em campo durante amistoso da Seleção Brasileira, em 2015, na cidade de São Paulo. Reprodução: UOL

Essas coisas se alojam e se processam em um nível mais profundo e complexo: o inconsciente; ou seja, não se racionaliza sobre, há apenas internalizações de crenças e estereótipos que são reforçadas constantemente pelas ideias vistas na TV e relações sociais do que a pele preta significa e para onde seres humanos que a possuem devem ser direcionados. Para que se pense é necessário que haja percepção e problematização do que está se passando; com a naturalização de piadas e comportamentos racistas, isso não acontece e milhões de pretos e pretas crescem com as ideias e sentimentos incapacidade de ocupar determinadas posições, não pertencimento, insegurança pela aparência física estar fora dos padrões e inferioridade, entranhados no corpo.

Toda essa história pode ser exemplificada usando o futebol.


Uma conta no Twitter montou e postou essas duas escalações e perguntou quem venceria. Para os olhares mais atentos, chamou a atenção o fato de, no lado Pace and Power (ritmo, velocidade) estarem apenas jogadores negros. No time dos atletas técnicos, 9 brancos.


Divisão de jogadores negros e brancos que segue o estereótipo de força e inteligência. Reprodução: Twitter

A divisão ilustra o estereótipo de que as qualidades dos jogadores pretos são, basicamente, força e velocidade. O talento com a bola e características como inteligência são logo associados aos atletas brancos.


Essa questão é bem problemática, porque atualiza a ideia da época da escravidão em que os pretos eram vistos como privilegiados fisicamente justamente para trabalhar mais duro e não para pensar, assim como os animais. A exploração da força de trabalho era justificada também por isso. Do outro lado, a premissa se reafirma. Os cargos que precisam de habilidades intelectuais são destinados aos brancos: presidentes, diretores, treinadores, os camisas 10.


Tinga, ex-jogador com passagens por Inter, Cruzeiro, Borussia Dortmund e Seleção Brasileira, comentou, em entrevista para a quarta edição da revista Corner, sobre o baixo número de negros em cargos de comando no futebol.


Quantos presidentes de clubes negros nós temos? Treinadores? Gestores? Num país que mais de 50% da população é considerada negra. Aí você pega os jogadores, um monte de jogador negro. Mas nos cargos de liderança você não vê. Então é bonito botar placa de não ao racismo, mas e a oportunidade? Será que estamos preparados pra sermos liderados por um negro?

Além de escancarar como o futebol ainda tem estruturas racistas, Tinga ainda afirmou que, por serem desencorajados desde cedo e não terem em quem se espelhar para acreditar que podem ocupar esses cargos, muitas pessoas negras internalizam isso e nem tentam.


Aos que tentam, resta o não ou a baixíssima tolerância com os maus resultados, como são os casos de Dwight Yorke, astro do Manchester United nos anos 90 que, apesar da formação adequada, disse não conseguir entrevistas de emprego para o cargo de técnico, e Andrade, ex-jogador e treinador campeão brasileiro pelo Flamengo, em 2009, que não teve novas chances em grandes times do país mesmo após a conquista do título. A justificativa é sempre a qualidade e capacidade do treinador mesmo com o título, mas fica claro que a boa vontade com Andrade é infinitamente menor do que com outros técnicos que acumulam trabalhos questionáveis, mas são brancos.


Andrade, treinador campeão brasileiro pelo Flamengo. Reprodução: CR Flamengo

Para além dos muros de um clube, outros campos do futebol relacionados à intelectualidade também são dominados por pessoas brancas. O jornalismo esportivo, que leva muito em conta a aparência física dos profissionais que aparecerão para milhões de pessoas, não costumava ser tão aberto aos profissionais que fugiam dos padrões de beleza.


Os impactos da falta de representatividade, de oportunidades e da desigualdade de tratamento na saúde mental de quem já está no meio do esporte mais popular do planeta são de conhecimento essencial. É de se lamentar o fato de que isso ainda não tenha a devida atenção, pois, ao contrário do que acreditam, ricos e famosos não se tornam automaticamente imunes ao racismo e aos danos psicológicos, que, muitas vezes, são sentidos sem que se faça a devida relação.


Todos esses preconceitos e estereótipos impregnados na cabeça das pessoas, e consequentemente no esporte, ajudam a manter um status quo que parece ser difícil de ser rompido. Para que isso aconteça, ações mais enfáticas sobre a questão devem ser adotadas estruturalmente, seja nas escolas, nos clubes, nas federações e confederações, nos programas esportivos e de outros segmentos.


Inúmeros casos envolvendo jogadores sendo alvos de ofensas racistas enquanto trabalham poderiam ser relatados aqui, mas não é da discriminação escancarada que esse texto trata, é a da que paira no ar através do que não se pode ver e ouvir.


Apesar da realidade desanimadora, o horizonte parece guardar melhores coisas aos que lutam para exterminar o maior mal do Brasil. O [Observatório da Discriminação Racial no Futebol](https://observatorioracialfutebol.com.br/), principal nome brasileiro no combate ao racismo no futebol, está tendo cada vez mais visibilidade e apoio de clubes e torcedores. Conheça e apoie o projeto.




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Fernanda Lima é uma mulher preta, baiana, psicóloga pós-graduanda em Psicologia do Esporte, social media, roteirista e colunista do PELEJA.

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