Parar de apitar foi uma das decisões mais difíceis que já tomei na vida. Você fica viciado na rotina, na adrenalina e no sentimento que é estar no meio de um estádio lotado com milhares de pessoas te assistindo.
Ainda assim, houve dias na minha carreira que eu preferia esquecer.
Eu pensei que fosse morrer num Corinthians e Santos. Já apitei jogo de várzea em que o treinador estava armado, o campo, rojão dentro do campo, tudo que tem direito. "Aí, Braghetto, não vai ajudar hoje?".
Mas nem se compara ao que vivi na Vila Belmiro. Vi uma torcida ensandecida balançando o alambrado, quase mordendo as grades, aos gritos de "Uh, vai morrer! Uh, vai morrer!". Eu fiquei com muito medo, os caras estavam cheios de ódio. E quando alguns torcedores começaram a invadir o campo e a polícia não conseguiu conter, eu pensei "É hoje que a gente vai morrer mesmo". Aquele jogo de 13 de outubro de 2005 foi o mais difícil da minha vida.
O clima já estava tenso muito antes da partida começar. Primeiro porque o contexto em si era tenebroso: 2005 foi o ano da matéria da Veja que revelou o esquema conhecido como a "Máfia do Apito" – que na verdade não era "do apito", e sim dos apostadores. Eles não conseguiram corromper toda a classe, apenas dois árbitros. O Edílson Pereira de Carvalho, que era um colega meu e foi o primeiro a ser descoberto. Depois, foi o Paulo José Danelon, um amigo que eu cumprimentava com beijo no rosto e que jamais desconfiaria.
Quando a matéria saiu, os torcedores nos estádios não nos xingavam mais, eles só nos chamavam de “Edilson”. Isso me deixava maluco. Era como se todos os árbitros do Brasil fossem corruptos, o que está muito longe de ser verdade. Juiz de futebol é mais profissional que muito atleta – que fique bem claro.
Com a história da "Máfia do Apito", todos os 11 jogos apitados pelo Edílson tiveram de ser remarcados. E aquele Santos e Corinthians era um deles. O problema é que o Santos havia ganhado de 4 a 2 na primeira partida, e o fato de uma derrota do Corinthians ter sido revisada fez muita gente acreditar que eles estavam sendo favorecidos naquele campeonato.
Todo o pré-jogo foi muito difícil. O Cléber Wellington Abade estava escalado como juiz. Eu era o quarto árbitro. Assim que o carro da Federação Paulista de Futebol em que estávamos embicou na Vila, muitos torcedores do Santos já estavam esperando para nos receber com ofensas de tudo que é tipo – até objetos eles atacaram na gente. Ali já soubemos que seria uma noite diferente.
Na hora em que a bola rolou, o jogo foi muito pegado. Gol pra um lado, gol pro outro. Mas, na volta do intervalo, alguns lances mudaram a história da partida. Primeiro, houve um pênalti claro a favor Corinthians, um carrinho do goleiro Saulo no Nilmar, que o Abade não marcou. O que inflamou a torcida foi a expulsão justa do atacante Luizão, do Santos, que veio do banco de reservas, deu duas cotoveladas seguidas no Wendel, do Corinthians, e sem tocar na bola, recebeu o vermelho.
"Seus filhos da puta, vocês são corintianos! Vieram aqui pra roubar a gente!"
No final, as coisas pioraram. Já eram 39 do segundo tempo, 2 a 2 no placar, e, numa bola levantada na área, o zagueiro santista Zé Elias desloca o Nilmar e o Abade marca pênalti — um daqueles pênaltis que só o juiz vê. A Vila veio abaixo.
Os jogadores do Santos fecharam nele na hora. Eu, como quarto árbitro, tive que administrar de fora o banco de reservas, escutando um monte dos jogadores e da comissão técnica. Você tem que ter um preparo mental muito grande em momentos assim, porque ouve coisas que nunca imaginaria na vida.
Dentro do campo, era só o Corinthians bater e ganhar o jogo. Depois de toda a confusão, eles finalmente batem e fazem o gol. 3 a 2. Ninguém acreditava no que estava acontecendo.
Quando o Abade coloca a bola no meio de campo para dar a saída e apita o reinício, o meia Giovanni, do Santos, dá um bico nela para a arquibancada. Nesse momento, a torcida, que já estava no alambrado louca, furiosa e cantando "Uh, vai morrer! Uh, vai morrer!", invadiu o campo. A polícia tentou de todas as formas possíveis conter a confusão, mas eles foram entrando pelos lados, pelo fundo, e de repente a invasão era generalizada.
Em situações assim, existia um protocolo da arbitragem que mandava ficarmos todos juntos, para a segurança do estádio nos proteger. Fazemos um sinal, como se puxando uma manivela de cima para baixo, chamando a polícia e a equipe para perto do árbitro.
Quando o Abade fez esse sinal, saí correndo para o centro do campo o mais rápido que pude, mas minha vontade era de correr para o vestiário, porque "o Abade merecia mesmo tomar um pau", pensei. (Risos)
Claro que nunca deixaria ele na mão, mas não precisava ter marcado aquele penalti.
Mesmo com a polícia ao nosso redor, do nada, um cara veio numa voadora à la Matrix na minha direção e, se eu não tivesse dado um passo pra trás, nem sei se estaria aqui pra contar essa história.
Para piorar, fomos nos aproximando do lado da torcida do Corinthians, para fugir dos torcedores do Santos.
“Vocês são corintianos mesmo, têm que entrar na torcida deles”.
Foi quando um dos seguranças falou: "Não vai ter como vocês irem para o vestiário da arbitragem". O local tinha sido invadido por torcedores, que haviam rasgado nossos ternos, dados nós de manga com manga, jogado na privada. Arregaçaram tudo.
Por fim, o chefe do policiamento falou: "Eu nunca vi uma torcida tão revoltada como essa, e não é com vocês, é com tudo que tá acontecendo no campeonato. Vamos ter que escoltar até São Paulo, porque os caras estão falando que vão pegar vocês na estrada".
Entramos na van do policiamento de choque com dois agentes mostrando as escopetas para fora da janela. Os policiais foram empurrando os torcedores, enfiando a viatura na frente de todo mundo e tirando a galera pra gente ir embora.
A equipe toda foi de Santos a São Paulo, naquela van, vestida de juiz. E direto para a minha casa, no Ipiranga, porque era a mais próxima. Assim que viatura parou na frente do meu prédio, quase uma hora da manhã, os porteiros viram os policiais armados e se esconderam embaixo da guarita.
Tive que descer da viatura e bater na janela para eles se acalmarem. "Ô, seu Braghetto, o que houve com o senhor?", perguntaram. Eu disse: "É que a gente teve um probleminha num jogo, precisamos entrar aí para fazer uma súmula", e só assim eles abriram. Começamos a escrever a súmula da partida uma e meia da manhã e terminamos quase às 5 horas, com o dia já amanhecendo.
Foi o jogo mais longo de toda a minha carreira – mas eu viveria tudo de novo.