Março de 1991. O resultado do exame de doping de Maradona é divulgado e o resultado é o que os napolitanos temiam: positivo para cocaína. Em novembro de 2017, Paolo Guerrero, então jogador do Flamengo, também testou positivo para um metabólito da mesma droga. Ao longo dos últimos anos, outros jogadores profissionais de alto nível passaram por situações parecidas e ficaram um bom tempo longe do esporte. Com fiscalizações rígidas, o cerco está cada vez mais apertado para quem não seguir na linha.
Assim como o doping faz parte do esporte há muito tempo, a tentativa de burlar o temido exame também acontece com frequência. Antes de saber como isso é possível, é importante entender o processo de testagem e as brechas que existem nos protocolos.
Quando os clubes filiados à CBF, dirigentes e médicos recebem, por e-mail, informações do Controle de Dopagem sobre as substâncias proibidas pela Agência Mundial Antidoping (WADA, em inglês) para atletas profissionais, esses se encarregam de passar as devidas orientações para jogadores e jogadoras. Seja por conversas, palestras e cartazes colados nos vestiários com informações e aplicativos para consulta, os atletas já estão ligados no que podem ou não consumir e a atenção deve ser redobrada. Enquanto a bola ainda está rolando, os médicos dos clubes são chamados para o sorteio dos atletas que farão o exame no fim da peleja. Sorteio feito, nomes definidos, é chegada a hora da verdade.
Ao término da partida, os jogadores sorteados são acompanhados diretamente à sala onde o exame será realizado. Detalhe: eles não podem ter contato com nenhuma outra pessoa (a não ser os profissionais do laboratório) e nem ir a outro lugar sozinhos antes da testagem. Dentro da Sala Antidoping, um momento constrangedor para alguns: os atletas precisarem para urinar em um potinho sendo constantemente e diretamente observados – água e refrigerantes ficam à disposição para ajudar. Depois de colhido o xixi, o jogador assina um termo e é liberado. Vendo esse passo a passo, parece um protocolo bem seguro contra fraudes, não? Mas nem sempre as coisas foram assim e é daquele tempo que técnicas de burlamento mais conhecidas vêm.
O PELEJA conversou com Cicinho, ex-jogador e ídolo do São Paulo que passou por Real Madrid, Roma e Seleção Brasileira. Ele relatou que as coisas eram um pouco diferentes quando ainda jogava. Segundo ele, os jogadores não precisavam ficar nus, como acontece em alguns casos hoje, e urinavam com os fiscais os vigiando por trás a uma certa distância. E o que era para ser um momento sério e relativamente rápido, virava festa e demorava quando as cervejas eram liberadas para acelerar a urina. Toda essa liberdade na hora do exame facilitava para uma das estratégias mais famosas de burlar o doping: a troca de xixi.
Cicinho conta que já ouviu casos de colegas que, sabendo que não estavam limpos, combinavam com pessoas do clube, dirigentes e até treinadores, para ajudá-lo a escapar de um flagra no exame e da longa suspensão que viria como consequência.
“Tinha jogador muito famoso que ia jogar nesses campos de interior, e no banheiro tinha uma janelinha. Quando ele caía, o diretor passava um copinho já com urina para ele.”
Cicinho não quis revelar nomes ou mais detalhes sobre o caso.
Quem também já usou essa, anos antes, foi Diego Armando Maradona. Usuário de cocaína desde os anos 80, a estrela argentina contava com a ajuda do seu próprio clube, o Napoli, para escapar de ser pego nos exames. O esquema foi revelado por Corrado Ferlaino, ex-presidente napolitano na época em que Maradona jogava por lá:
“[...] se alguém estivesse em risco, eles receberiam um recipiente contendo alguém a urina de outra pessoa; escondeu-a no macacão e na sala antidopagem, em vez de fazer o seu, despejava a urina 'limpa' do companheiro no recipiente de análise”
Aliado a isso, era feito um cálculo para determinar o tempo de uso de algumas substâncias proibidas. Por exemplo: se a partida fosse domingo, até quarta o consumo estava liberado, porque havia margem para que os exames não detectassem mais a substância.
Provavelmente foi assim que Maradona conseguiu, mesmo usando drogas, passar quase uma década sem ser flagrado nos exames.
Emanuel Colombari, jornalista de esportes do UOL, trouxe à tona outra forma bem conhecida de tentar burlar o exame antidoping: o uso de medicamentos que mascaram substâncias. Nesse sentido, os diuréticos são os principais remédios utilizados e são eles que costumam aparecer no exame. Pelos remédios terem outras funções, não se pode afirmar que, em todas as vezes que um diurético é detectado, o atleta realmente fez uso de algo proibido e está tentando passar ileso. Porém, como o uso é proibido sem que o médico do clube relate previamente a situação, a punição acontece mesmo assim; as penas, no entanto, são menores. Mesmo com as defesas alegando desconhecimento, é raro jogadores conseguirem se safar de alguns meses de afastamento dos gramados, justamente por terem informações e profissionais à disposição, além de já conhecerem o regulamento de ingestão de medicamentos.
Nilton e Wellington, ambos jogadores do Internacional, pegaram ganchos de 5 meses por uso de diuréticos, em 2015. Fred, atualmente no Manchester United, foi punido em 1 ano pelo mesmo motivo. O volante vestia a camisa da Seleção Brasileira na Copa América quando a amostra foi colhida.
No futebol feminino brasileiro o panorama é outro.
Trocamos ideia com a ex-jogadora Carla Oliveira, conhecida como Carla Índia, que já vestiu a camisa do Avaí/Kindermann, vice-campeão do Campeonato Brasileiro de 2020, e ela revelou que a testagem antidoping é coisa bem recente na modalidade:
“Não era uma coisa comum, tanto que eu nunca fiz. As únicas competições que tinham doping eram as militares, 5 anos atrás quando me aposentei.”
Até 2019, nem as maiores competições nacionais exigiam o exame das atletas, ficando este restrito aos torneios internacionais que começaram um ano antes. Agora, o doping já faz parte do cotidiano das jogadoras de elite e o procedimento de coleta da urina é o mesmo utilizado no masculino. Os métodos de tentar burlar, também. No mesmo papo, Carla contou que sabe de casos em que as jogadoras usam da tática semelhante a uma de Maradona.
“Conheço jogadoras que já usaram substâncias proibidas fora do período de competição, mas para a competição mesmo. Para ganho de massa muscular, como por exemplo o hormônio masculino. Aí faz fora o período. Não sei quanto tempo tem que esperar, mas elas provavelmente sabem, porque fizeram. Ou substâncias para emagrecer... [...] elas usam substâncias proibidas fora do período de competição para ganho esportivo, para performance. Conheço algumas, inclusive. Conheço também quem já usou droga fora do período de competição.”
Kerolin, uma das jovens revelações nos últimos anos, foi pega no exame antidoping quando jogava pelo Audax na Libertadores de 2018 e ficou dois anos afastada do campo. Alguns meses depois, Kerolin e boa parte do elenco do Audax, inclusive a treinadora, foram contratadas pelo Palmeiras. Foi então que uma polêmica agitou o futebol feminino.
A técnica Ana Lúcia Gonçalves e a supervisora Renata Pelegatti foram demitidas pelo clube alviverde na fase final do Paulista de 2019 por, supostamente, ainda no Audax, terem incentivado atletas a usarem substâncias proibidas para melhorarem o rendimento. As duas negaram as acusações e Kerolin, nas redes sociais, saiu em defesa das antigas chefes.
E essa não foi a primeira vez que pessoas influentes são envolvidas em investigações sobre estímulo a uso de substâncias proibidas. Em 2002, o médico especialista em doping Júlio César Alves chocou o mundo do futebol ao falar abertamente sobre como ajuda atletas a melhorarem o desempenho burlando as ordens da Agência Mundial Antidoping. Onze anos mais tarde, deu novamente declarações polêmicas ao afirmar que Neymar usaria drogas para ganhar massa muscular e que trabalhava em sigilo com dois jogadores da Seleção Brasileira principal.
“Doping sempre existiu e existirá. Hoje, recebo muitos atletas jovens para que eu os prepare e para que eles não caiam no doping [...]”
Cada vez que as regras antidoping ficam mais claras e rígidas, os métodos de burlar o exame também se sofisticam. Resta saber até onde os jogadores e jogadoras ainda estão dispostos a ir para potencializarem suas capacidades.